A atual pandemia do COVID-19 fez com que o espaço digital ocupasse um espaço ainda mais importante para as eleições municipais de 2020. Com as propagandas eleitorais sendo feitas majoritariamente pela Internet, o pleito gera um impacto direto na área de privacidade e proteção dos dados pessoais dos eleitores.
Para entender melhor essa conjuntura, o LAPIN entrevistou Stela Sales e Diogo Rais, professores do Instituto Liberdade Digital, para informar os eleitores sobre como dados pessoais podem ser usados no contexto eleitoral para finalidades políticas.
Confira:
Qual é o nosso cenário atual de tratamento de dados dos eleitores para fins de campanhas eleitorais?
Diogo – O tema da proteção de dados e eleições é de fundamental importância porque as eleições processam e trabalham com muitos dados, seja pelo processo eleitoral, cadastramento dos eleitores, desenvolvimento do sistema de votação, até o cadastro que isso envolve, como o domicílio, preferências e outros dados sensíveis. Além dessa parte estatal, ainda há conteúdo dos candidatos para as campanhas e há cadastros que são formados ao longo do tempo para serem usados nas campanhas. Eu acredito que a proteção de dados é um dos remédios mais eficazes para o combate aos efeitos colaterais do direito eleitoral digital, ou seja, desinformação online, disparo em massa de conteúdo irregular, entre outros desafios ilícitos a respeito de uso indevido de microtargeting contratado por terceiros.
No âmbito eleitoral, os dados acabam sendo processados aos montes pelas campanhas, pelos partidos e candidato. O grande desafio da LGPD é que sua eficácia se deu por meio de um imbróglio e isso gerou uma despreocupação das campanhas e partidos em tratar desse tema. Acontece que esse tema é relevante primeiro em respeito ao próprio eleitor, segundo em respeito ao princípio da privacidade de dados.
Antes mesmo de ser definida a eficácia da LGPD, o STF, no caso do IBGE, por meio da Ministra Rosa Weber já tinha aplicado uma espécie de ultratividade da norma, dizendo que os princípios da LGPD deveriam e poderiam ser aplicados. Então, de certa maneira, vivemos em ambiente de privacidade ainda que na ausência da Lei. Mas no campo eleitoral, as coisas podem ser ainda mais difíceis, já que existe o art. 16 da Constituição e algumas pessoas têm questionado se esse artigo não afastaria a aplicação da LGPD. Eu acredito que não porque a LGPD estava publicada há muitos anos e não se refere à matéria eleitoral. Nesse sentido, o TSE, quando publicou as resoluções eleitorais, mencionou a existência da LGPD mesmo sem saber da sua eficácia. Por isso, a LGPD se aplica a todos, inclusive às eleições.
Quais são os principais princípios de proteção de dados que se aplicam às eleições de 2020 e que devem orientar o processamento de dados dos eleitores?
Stela – Todos. No art. 6º da LGPD estão relacionados os princípios que devem nortear o tratamento de dados pessoais no Brasil, e não há uma distinção para o ambiente eleitoral. A lei é geral, e, portanto, tratou dados em qualquer ambiente, sendo necessário seguir todos os princípios. Destaco dois princípios: o da finalidade e o da necessidade. O princípio da finalidade afirma que a realização do tratamento deve ter propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados para cada dado. Os partidos políticos não podem, pelo princípio da finalidade, coletar dados para fins de pesquisa e encaminhar propaganda eleitoral, não se pode coletar dados para fins de newsletter e usar esses dados para traçar o perfil psicológico do eleitor. O outro é o princípio da necessidade, que diz que a gente só pode tratar dados estritamente necessários, não se pode coletar uma grande quantidade de informação para depois decidir quais dados serão utilizados. Os partidos políticos, campanhas, agências de marketing estavam acostumadas a coletar vários dados sem finalidade e necessidade explícitas, para uso geral, amplo e irrestrito, como no caso de cadastro para recebimento de newsletter em que se pediam dados irrelevantes, como data de nascimento e CEP da pessoa.
Quais são os fundamentos e bases legais que explicam o uso dos dados pessoais dos eleitores pelos partidos políticos?
Stela – Os partidos políticos podem tratar dados de várias maneiras, para várias finalidades, como dados, por exemplo, para registro de empregados do partido, para coleta de temperatura em reuniões presenciais como medida de combate ao Covid-19, para fins de pesquisa, envio de propaganda, dentre outros. Para cada tratamento uma ou mais bases legais poderá ser utilizada. A Lei dos Partidos Políticos (art. 19) dispõe que o partido deverá inserir os dados do filiado no sistema eletrônico da Justiça Eleitoral. Essa obrigação regulatória é uma das bases legais disponíveis e que poderá ser usada para esse tratamento. Além disso, no contexto de registro de empregados, por exemplo, podemos pensar em duas bases legais: obrigação regulatória e execução de contrato, o que legitimaria o tratamento de uma série de dados como PIS, nome, CPF, endereço, entre outros. Então, não existe uma base legal só. Atualmente, para a realização de uma convenção partidária presencial em segurança, o partido poderia optar por medir a temperatura dos participantes sem necessidade de obter o consentimento delas, e isso é possível porque o partido estaria amparado pela base legal de proteção à vida. Além disso, alguns dados ficam públicos, e essas situações não estão na abrangência da Lei.
Os partidos políticos querem usar os dados pessoais dos eleitores para quê? Você poderia nos dar exemplos do que os partidos não podem fazer com os dados dos eleitores?
Stela – O partidos, como qualquer empresa, querem coletar dados para conhecer o eleitor e poder entregar propaganda eleitoral que o conquiste. No entanto, segundo o fundamento da autodeterminação informativa (art. 2º, II, LGPD) os controladores dos dados, sejam eles partidos políticos ou não, não podem tratar dados sem autorização do titular (consentimento) ou respaldados por outra base legal que autorize o partido a tratar esses dados. Assim, o partido não pode tratar dados sem uma base legal que o autorize e ainda que tenha uma base legal, precisa observar os princípios dispostos no art. 6 da LGPD.
Por isso, é fundamental que os princípios da LGPD sejam observados e que haja uma base legal que respalde o tratamento. Os dois elementos são, portanto, necessários para um tratamento adequado. Um exemplo dessa relação é o caso do IBGE e a medida provisória nº 954. Existia uma base legal para o IBGE tratar dados, a de realização de estudos por órgão de pesquisa, mas a MP feria muitos princípios, de modo que não estavam claras a finalidade, a necessidade ou até mesmo as medidas de segurança que seriam observadas. A ministra Rosa Weber motivou a decisão de suspensão da MP destacando os princípios da finalidade, necessidade e segurança, que com toda certeza podem ser aplicados ao contexto eleitoral.
O que os eleitores podem fazer se os partidos usaram os dados pessoais deles indevidamente?
Stela – O movimento para proteção de dados já está acontecendo, como evidencia o caso Cyrela que foi julgado no TJSP e determinou que a empresa pagasse indenização por danos morais pelo uso indevido de informações pessoais. No entanto, antes de judicializar o caso ou de levar à ANPD (quando esta já estiver em operação), acho que vale exercer os direitos dispostos no art. 18 da LGPD e fazer contato com o partido ou campanha, solicitando providências. Sempre é bom lembrar também, especialmente em período eleitoral, que pode ser eficaz fazer uma denúncia ao Ministério Público, que tem uma posição muito importante no processo eleitoral e poderá investigar o uso indevido de dados pessoais.