Moderação de Conteúdo e desinformação: um debate necessário

Gustavo Ribeiro
Julia D´Agostini
Paulo Henrique

Raquel Rachid

A pandemia do novo Coronavírus escancarou e potencializou problemas e desafios enfrentados pela sociedade, tal como a desinformação (OMS, p. 34; ONU, p. 13). Os riscos envolvendo a disseminação de informações falsas e enganosas com o potencial de manipular a opinião pública são inegáveis. Para citar um exemplo recente, no Irã, centenas de pessoas morreram após a ingestão de metanol, sob a crença de que a substância mataria o vírus.

Nesse contexto, surgem inúmeras iniciativas legislativas que buscam enfrentar o problema. Embora seja notável a relevância de esforços nesse combate, é preciso compreender os riscos envolvidos nessa discussão para que direitos fundamentais não sejam violados. É nesse sentido que o estudo Balancing Act: Countering Digital Disinformation While Respecting Freedom of Expression publicado pela UNESCO em setembro de 2020 analisou as medidas de enfrentamento à desinformação adotadas em nível global, trazendo recomendações como a necessidade de que as legislações que se proponham a combater a desinformação se preocupem com a garantia de Direitos Humanos (como liberdade de expressão, acesso à informação e privacidade), bem como evitem criminalizar a desinformação.

No ano de 2020, dentre os variados esforços legislativos que buscaram tratar dos temas de desinformação e regulação de plataformas online, o grande protagonista das discussões foi o Projeto de Lei 2.630/2020. Isso porque, ao tentar combater o problema da desinformação, trouxe conceitos opacos e grandes riscos para a liberdade de expressão e privacidade dos cidadãos. Apesar de profundos debates na academia e sociedade civil, tentativas recentes de enfrentar o fenômeno da desinformação parecem percorrer um caminho arriscado às garantias fundamentais.

Câmara dos Deputados e PLs na esteira dos banimentos a Trump

Se você não ficou sabendo sobre o bloqueio e banimento de contas do ex-presidente dos Estados Unidos da América em redes sociais, não deixe de dar uma olhada nisso! É especialmente em decorrência desses eventos que alguns projetos de lei surgiram na Câmara dos Deputados.

No dia 4 de janeiro de 2021, encabeçado pelo Deputado Federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança, filiado ao Partido Social Liberal de São Paulo (PSL/SP), foi apresentado o Projeto de Lei nº 213/2021, que possui como sua premissa principal a alteração do texto contido na Lei nº 12.965, o denominado Marco Civil da Internet (MCI).

A proposta sugere o acréscimo do artigo 19-A e a alteração do artigo 20 do MCI. Estas alterações, em suma, visam proibir provedores de aplicações de internet a removerem conteúdo gerado por usuário, senão mediante ordem judicial. Quanto mais, caso autorizados a realizar a remoção, os provedores devem fornecer ao usuário todas as informações necessárias para o exercício de seu direito ao contraditório e ampla defesa – além de dever disponibilizar as informações concernentes à remoção, em especial, a sua razão.

Posteriormente, no dia 5 de fevereiro de 2021, por iniciativa da Deputada Federal Caroline de Toni, igualmente filiada ao PSL pelo estado de Santa Catarina (PSL/SC), foi apresentado o Projeto de Lei nº 246/2021. Em síntese, tal projeto pretende alterar o presente regime de moderação de conteúdo adotado para a remoção de conteúdos supostamente inverídicos pelos provedores de aplicações de internet. De acordo com o texto, o provedor “que censurar ou banir opinião ou perfil de usuário, ou rotular o conteúdo de opinião de usuário, responderá pelos danos causados ao próprio usuário ou, solidariamente com este, a terceiros”. Além disso, a proposta traz duas definições de ‘rotulagem de conteúdo’ pelo provedor. Um, quando este deixe de atuar como mero intermediário das publicações de usuários e realize, de qualquer modo, função editorial sobre a opinião veiculada em sua rede. Dois, quando faça algum juízo de valor sobre tal conteúdo, tal como classificá-los como próprios ou impróprios, enganosos, questionáveis ou não confirmados.

No dia 8 de fevereiro de 2021, por iniciativa liderada pelo Deputado Federal Daniel Silveira (PSL/RJ), houve a proposição do Projeto de Lei nº 291/2021. Este, de maneira similar ao Projeto de Lei nº 213/2021, procura alterar o texto contido no MCI, acrescentando a estes os artigos 21-A, 21-B e 21-C.

Diferentemente dos projetos de lei anteriores, estes dispositivos focam na definição de critérios para as cláusulas de contratos de termos de uso, que regem a relação entre o provedor de aplicação de internet e seus usuários. Estes fixam que estariam nulas quaisquer cláusulas contratuais que previssem aos provedores o direito de “suspensão ou indisponibilização de conteúdo de usuário em decorrência de orientação política ou expressão de opinião”. Ademais, é disposto que, constatada a remoção em contrariedade às regras do PL, estaria o provedor praticando conduta abusiva, sendo, portanto, punível por multa e, havendo cláusulas abusivas, a penalidade poderia ser cumulada com a suspensão das atividades pelo período de noventa dias.

Por fim, no dia 19 de fevereiro de 2021, por iniciativa da Deputada Federal Dra. Soraya Manato (PSL/ES), foi apresentado o Projeto de Lei nº 495/2021. Este, propõe alteração da redação do artigo 18 do MCI com a perspectiva de que seja vedada qualquer remoção de conteúdo, sob pena da aplicação de sanções.

São projetos que justificam suas propostas na amplitude do poder exercido pelas grandes plataformas – que, de fato, pouco partilham do seu ambiente de decisão socialmente e acabam projetando decisões que afetam usuários em todo o mundo. Um exemplo desse elemento é a notícia de que o Facebook reduziria a distribuição de conteúdo político para uma parcela dos usuários no Brasil; uma medida que contribui para o distanciamento do cenário político, que deve ser amplamente participado. Há, todavia, um elemento bastante preocupante na não limitação de discursos que atentam contra a vida em última instância; não faltam situações exemplificadoras desse fenômeno, principalmente nos últimos meses.

Uma Nova Essência para o Debate

Com efeito, a desinformação é um fenômeno que data desde tempos antigos. Ocorre que, na contemporaneidade, suas consequências tornaram-se exponenciais devido à ampla difusão dos meios de comunicação por mídias sociais e da velocidade do fluxo informacional. Dentre seus efeitos, pode-se listar a erosão da confiança em instituições democráticas; debilitação de direitos humanos; a complexidade de se equilibrar soluções com os direitos de acesso à informação e à liberdade de expressão e; inclusive, obstáculos à conscientização popular sobre como agir na pandemia – tal como destacado pelo Escritório do Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos.

Por razão destes riscos, qualquer legislação que se proponha a endereçar a desinformação em ambientes digitais deve decorrer de um profundo debate envolvendo setores diversificados da sociedade. No entanto, até então, o fio condutor das discussões na esfera pública1 tem sido ameaçado – tal como ilustram o inquérito instaurado no STF, a CPMI das Fake News no Congresso Nacional e indícios de uma rede de desinformação no Executivo.

No passado, o Brasil foi aplaudido mundialmente pelo processo que culminou no Marco Civil da Internet. Uma vez mais, cabe às partes que mobilizam o poder decisório a abertura de canais saudáveis de comunicação com os interessados e especialistas – a fim de que a próxima proposta não instaure mais uma camada de problemas ao invés de contribuir para sua solução (seja por meio do emprego de conceitos dúbios, como ‘Fake News’; o bloqueio generalizado de mídias sociais; o encerramento de websites; a retenção significativa e desnecessária de dados pessoais ou; a moderação indiscriminada de conteúdo online).

[1] Apesar de também se darem em ambientes virtuais privados, como as redes sociais mais amplamente difundidas.

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