As duas Big Techs brasileiras do setor de processamento de dados, Serpro e Dataprev, foram incluídas no Programa Nacional de Desestatização (PND) em janeiro de 2020 por meio do Decreto Presidencial nº10.199 e nº10.206[1]. Atualmente, ambas as empresas públicas estão sob estudos técnicos do BNDES para definição da modelagem de desestatização que poderão acarretar um processo de alienação total ou parcial[2].
A Serpro é a maior empresa pública de prestação de serviços em tecnologia da informação no mundo. Criada em 1964, atua principalmente no segmento das finanças públicas. Alguns produtos compreendidos no catálogo da Serpro são as bases de dados: CPF, CNPJ, IRPF, CNH, Renavam, REFIS, PIS, assim como o Fundo de Participação dos Estados, o RAIS, SIASG e o Fundo de Participação dos Municípios, entre outros. Segundo o The Intercept, a Serpro possui dados e fotos de cerca de um terço da população brasileira[3].
A Dataprev, por sua vez, criada em 1974, mantém serviços relativos à previdência social, é responsável pela gestão da Base de Dados Sociais Brasileira e pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Durante a pandemia de Coronavírus, a Dataprev exerceu um grande papel na política econômica do Governo Federal, reunindo as informações e realizando a aprovação de todos os beneficiários do auxílio emergencial[4].
Juntas, as empresas mantém os dados de pessoas e de instituições do Brasil, como: os cadastros de pessoas físicas e jurídicas, imposto de renda, passaportes, carteiras de motoristas, bolsa família, registros de veículos, comércio exterior, registros de nascimento, cadastros trabalhistas e de empresas, aposentadorias, pensões, seguros desemprego, salário-maternidade, entre outros dados utilizados no gerenciamento de serviços e políticas públicas.
Em maio de 2021, a Sociedade Brasileira de Computação se manifestou contrária à privatização das duas empresas, considerando os riscos de transferência dos dados assegurados por elas para o setor privado[5]. A OCDE, em movimento semelhante em outubro de 2020, recomendou “muita cautela” no estudo A Caminho da Era Digital no Brasil. No documento a OCDE ressalta que há atualmente “um debate em torno da possibilidade de os titulares de dados perderem o controle de seus dados pessoais em decorrência da privatização, ou até que ponto esses dados poderiam ser acessados e usados para outros propósitos comerciais uma vez que as empresas terão acesso às informações nos contratos originais que foram feitos com entidades públicas, incluindo dados pessoais”[6]. Os próprios funcionários das duas empresas lançaram a campanha “Salve Seus Dados”, que busca explicar à população a importância das funções desempenhadas pelas empresas.[7]
Em abril, o senador Paulo Paim (PT-RS) apresentou requerimento à Comissão de Assuntos Sociais do Senado para a realização de audiência pública com especialistas para debater os riscos da venda de bases de dados previdenciários. O ministro Edson Fachin, em fevereiro, defendeu que o processo de privatização das duas empresas deve passar pelo Congresso. O Ministro do Supremo Tribunal Federal argumentou que se as estatais foram criadas por lei específica, sua extinção também deve ser avaliada pelo legislador[8].
O Ministério Público Federal, por sua vez, foi além para pugnar pela impossibilidade legal de desestatização do Serpro. Em nota técnica enviada ao Ministério da Economia[9], o MPF, sob a premissa de que o tratamento de dados realizado pelo SERPRO visa imperativos de segurança do Estado, alertou sobre o obstáculo legal disposto no §4º do art. 3º da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) em transferir tal tratamento de dados para pessoa jurídica de direito privado que não que possua capital integralmente constituído pelo poder público.
O movimento geral por parte da opinião pública e política é de cautela e observação sobre o processo de desestatização, especialmente no que diz respeito ao tratamento massivo de dados pessoais de fornecimento obrigatório e de segurança de Estado. Ressalta-se, ainda, que ambas as empresas desempenham importante papel na prestação de serviços de TI para a sustentação de serviços finalísticos da Administração Pública Federal. As privatizações merecem estudos mais aprofundados para avaliar se o mercado privado terá condições de substituí-las antes que o governo as ponha à venda e se os serviços prestados usufruirão da segurança e qualidade que as empresas públicas oferecem.
Portanto, qualquer movimento que busque trazer nova roupagem jurídica às empresas públicas terá de levar em conta, dentre outras questões, a arquitetura jurídica nacional da proteção de dados.
Logo de início, é válido constatar que com a recente entrada em vigor da LGPD ainda é incipiente a regulamentação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e a própria implementação pelas empresas. A desestatização do tratamento de dados da forma como é feito hoje pelo SERPRO e pela Dataprev pode-se mostrar um risco aos próprios fundamentos da disciplina da proteção de dados estampados no art. 2º da LGPD, como o respeito à privacidade, à autodeterminação informativa, os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.
Para além disso, a lógica em si de transferir para a iniciativa privada a execução do tratamento dos dados pessoais sob controle do SERPRO e da Dataprev deve ser analisada com cautela. Isso porque, tem-se um tratamento massivo de dados pessoais e dados pessoais sensíveis, muitos deles de fornecimento obrigatório pelos titulares.
[1] Serpro e Dataprev (bndes.gov.br)
[3] Abin quer os dados de todas as carteiras de motorista do país (theintercept.com)
[5] Manifestação da SBC sobre a Privatização do Serpro e Dataprev, SBC, Salvador, 5 de maio de 2021.
[6] OCDE pede cautela com privatização de Dataprev e Serpro; dados preocupam – Olhar Digital
[7] Salve Seus Dados
[9] MPF. Privatização do Serpro contraria legislação e ameaça segurança nacional, afirma MPF em nota técnica. MPF, Secretaria de Comunicação Social da PGR, 25 de fev. 2021. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/privatizacao-do-serpro-contraria-legislacao-e-ameaca-seguranca-nacional-afirma-mpf-em-nota-tecnica. Acesso em: 28 de maio de 2021.