Propriedade Intelectual e Proteção de dados: das origens ao segredo de negócio

 Eliz Bariviera

As áreas de proteção de dados e propriedade intelectual, apesar de todas suas diferenças, têm também proximidade muito maior do que usualmente se percebe entre áreas diferentes do Direito. Isso é explicado, já de cara, pelo fato que ambas tutelam bens imateriais muito valorizados na sociedade informacional. Na atuação prática da advocacia, com o crescimento da área de proteção de dados, muitas vezes se vê que o setor de propriedade intelectual de grandes escritórios passou a abarcar essa matéria.

Apesar disso, as formas de regulamentar a proteção de dados são muito anteriores às legislações hoje vigentes, e, em suas origens em diversos países, eram muito próximas da propriedade intelectual. Essas discussões podem ser vistas inclusive na disputa de posições entre os Estados Unidos e a Europa. Enquanto aquela prioriza o viés da propriedade e contratual, esta adotava uma perspectiva de dados pessoais como direitos fundamentais. A opção europeia é preponderante, mas ainda assim é inegável que a construção de sistemas jurídicos de proteção de dados se inspirou em certos institutos da propriedade intelectual, a exemplo do direito de retirada ou de integralidade, já que ali já estavam consolidadas normas capazes de tutelar direitos imateriais1

Esse diálogo entre essas duas áreas do direito também é encontrada em documentos fundamentais de cada uma delas2. O artigo de Warren e Brandeis, “The Right to Privacy”, argumenta a respeito de como a proteção da PI era fundamentada numa concepção ampliada de privacidade e direitos de personalidade3.

Como consequência, existem aproximações e conflitos entre o regime de proteção de dados e o regime de propriedade intelectual. Na posição norte-americana, mesmo ao se recusar um caminho proprietarista, podia-se ainda recorrer a outras alternativas de propriedade intelectual, como um sistema essencialmente contratual ligados ao instituto de segredo de negócio. Nessa ideia, não é a informação em si que é tutelada, mas sim certas formas de seu compartilhamento e utilização, especialmente no âmbito empresarial4

No Brasil, também podemos observar esse diálogo. De forma geral, as legislações de propriedade intelectual brasileiras vigentes são muito anteriores às de proteção de dados (com exceção do art. 43 do Código de Defesa do Consumidor, de 1990). A Lei de Direito Autoral (LDA, Lei n. 9.610/98) e a Lei de Propriedade Industrial (LPI, Lei n. 9.279/96) são do final do século passado. Enquanto isso, o Marco Civil da Internet é de 2014 e a Lei Geral de Proteção de Dados foi aprovada em 2018, baseada no RGPD europeu. Ainda há uma avançada discussão para a criação de uma lei específica para a área de segurança pública5, inspirada fortemente na Diretiva (UE) 2016/680. 

Com a entrada em vigor da LGPD no Brasil, o legislador optou por incorporar e até mesmo privilegiar a preservação do segredo de negócio nas normas sobre proteção de dados. Desde a parte principiológica, até a atuação da ANPD, do controlador e do operador, a observância ao segredo comercial e industrial é citada 13 vezes. Esse resguardo é feito como limite ao princípio da transparência previsto no art. 6º, VI da Lei, pois poderia ensejar violações ao segredo de comercial em caso de requisição de informações pelos titulares, facilitando a ocorrência de concorrência desleal. 

Além disso, pela própria natureza da necessidade de se manter e informação sigilosa, há uma impossibilidade de proteção do segredo de negócio através do patenteamento ou de outros registros, que são o meio usual para proteção de elementos intelectuais relacionados à atividade industrial6

Fora as barreiras da proteção dos segredos de negócio, ainda existem diversas dificuldades técnicas em relação à transparência algorítmica, já que os processos (como o machine learning e redes neurais) dos quais decorrem as decisões são não raramente muito complexos e os próprios programadores têm dificuldades em explicar os resultados obtidos. Por isso, pelo menos os aspectos principais e a lógica das decisões precisam ser esclarecidos, com possibilidade de revisão (art. 20, caput, da LGPD). Como não haveria publicização do código inteiro ou de partes deles, mas apenas dos critérios e elementos que guiam o programa, o segredo poderia ser preservado7, sendo possível assim cumprir plenamente a obrigação do controlador prevista no art. 20, §1 da LGPD.

Caso essas explicações sejam insuficientes ou incompletas em razão da proteção dos segredos de negócio, o art. 20, §2 determina a responsabilidade da Autoridade Nacional de Proteção de Dados em realizar auditorias e apuração de eventuais aspectos discriminatórios no tratamento automatizado.

Como visto, encontramos na LGPD, principalmente por meio da atuação subsidiária da ANPD, uma tentativa de balancear os direitos dos titulares e da sociedade em relação aos seus dados pessoais com a proteção do segredo de negócio, que é um elemento muito importante da atividade empresarial, especialmente na indústria da inovação e dos bens informáticos.

[1] LANA, P. P; BARIVIERA, E. M. Sobre a intersecção entre a propriedade intelectual e a proteção de dados pessoais. Boletim GEDAI, 2021. Disponível em: < https://www.gedai.com.br/sobre-a-interseccao-entre-a-propriedade-intelectual-e-a-protecao-de-dados-pessoais/>

[2]  LIEBENAU, D. What intellectual property can learn from informational privacy, and vice versa. Harvard Journal of Law & Technology. 30, 1, 285-307, 2016.

[3]  WARREN, S. D.; BRANDEIS, L. D. The Right to Privacy. Harvard Law Review, v. 4, n. 5, p. 193, 15 dez. 1890.

[4]  SAMUELSON, P. Privacy As Intellectual Property? Stanford Law Review, v. 52, n. 5, p. 1152-1169.

[5]  REIS, C.; et al. Nota técnica sobre o anteprojeto de lei de proteção de dados pessoais para a segurança pública e investigação criminal. Brasília: Lapin, 2021. Disponível em: https://lapin.org.br/wp-content/uploads/2021/03/NT_APJ-para-Seguranca-Publica-e-Investigacao-Criminal.pdf 

[6]  MORATO, Antonio Carlos; CHINELLATO, Silmara Juny Abreu. Direitos Básicos De Proteção De Dados Pessoais, O Princípio Da Transparência E A Proteção Dos Direitos Intelectuais. In: DONEDA, Danilo; et al. Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. Cap. 33. p. 644-667.

[7]  FRAZÃO, Ana. Transparência de algoritmos x segredo de empresa. 2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/transparencia-de-algoritmos-x-segredo-de-empresa-09062021. Acesso em: 19 jun. 2021.

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A proteção de dados pessoais tem origem no direito à privacidade, tema especificamente debatido na obra The Right to Privacy por Samuel Warren e Louis Brandeis, publicado em 1890 pela revista Harvard Law Review, a qual começou a delinear tal direito a partir de uma percepção do “direito de estar sozinho” (WARREN; BRANDEIS, 1890, p. 195). Esse conceito de direito à privacidade foi positivado no artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que consagrou o direito à vida privada. A Constituição Federal de 1988 (CF/88) também bebeu dessa fonte e reconheceu tal direito no seu art. 5º, X.