Zero-rating e desinformação: a relação entre a precariedade do acesso à internet no Brasil e a disseminação de conteúdos enganosos

Julia D’Agostini

O zero-rating (tarifa zero) é a prática por meio da qual operadoras de telefonia móvel disponibilizam o acesso a alguns aplicativos previamente determinados aos clientes sem que esse acesso seja considerado para efeitos de cobrança ou consumo de franquia pelo usuário, mesmo depois de esgotada a franquia de dados contratada. 

A prática é utilizada na maioria dos planos móveis no Brasil. Em 2019, o Idec analisou 45 planos de telefonia móvel, identificando dentre eles apenas dois que não possuíam aplicativos de acesso gratuito após o término da franquia. Apesar de ser utilizada abertamente no Brasil e em outros países do mundo, essa prática traz algumas preocupações.

O princípio da Neutralidade de Rede

A neutralidade de rede foi reconhecida pelo Comitê Gestor da Internet – CGI.br como um princípio para a governança e o uso da internet em 2009, tendo sido definido que “[f]iltragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento”. O princípio foi incorporado pelo Marco Civil da Internet (Lei n º 12.965/2014) e reforçado pelo Decreto 8771/2016, que determina que:

Art. 10. As ofertas comerciais e os modelos de cobrança de acesso à internet devem preservar uma internet única, de natureza aberta, plural e diversa, compreendida como um meio para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não discriminatória.

É importante compreender que o princípio da neutralidade da rede não é absoluto, havendo hipóteses legais em que a discriminação de tráfego é permitida, como em situações de calamidade pública. Na pandemia do novo Coronavírus, por exemplo, ocorreu a disponibilização de aplicativos vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS) sem que o acesso fosse descontado da franquia de dados. Essa aplicação do zero-rating garante que o aplicativo poderá ser acessado independentemente da situação do plano de dados das pessoas, possibilitando o acesso a ferramentas de enfrentamento à pandemia pela população.


Contudo, em outros contextos, a prática deve ser avaliada com maior cautela. É preciso considerar os problemas emergentes do fato de que o acesso de muitas pessoas não ser aberto a toda aplicação ou conteúdo na internet, mas sim restrito a alguns aplicativos previamente selecionados. Embora essa prática seja defendida por alguns como uma forma de garantir o acesso à internet a grande parte da população, é importante considerar que estratégias comerciais que dão tratamento diferenciado a determinados provedores de conteúdo e aplicativos acabam por ferir a autonomia do usuário de escolher o conteúdo que deseja acessar. Para grande parte da população, aplicativos seletos são o único caminho para o acesso à internet. Por isso, o zero rating reforça o efeito dos jardins murados e desafia a efetivação da neutralidade de rede no Brasil.

Zero-rating e desinformação

Para além dos desafios relacionados ao princípio da neutralidade da rede de forma ampla, é importante  compreender como a prática de zero-rating cria condições favoráveis para a disseminação de desinformação.

Segundo dados divulgados pelo CETIC.br na pesquisa TIC Domicílios de 2019, 85% dos usuários de Internet das classes D e E acessam a Internet exclusivamente por meio de dispositivos móveis.

Com o acesso restrito aos aplicativos liberados, pessoas de baixa renda ficam com uma capacidade de navegação limitada aos aplicativos englobados pelo zero-rating. Os usuários ficam com acesso restrito às manchetes de conteúdos compartilhados em aplicativos de mensageria e redes sociais, dificultando a checagem das informações recebidas, enquanto o acesso à publicação original (e ao conteúdo integral da notícia) fica restrito àqueles com maiores pacotes de dados. Isso ajuda a explicar o fato de o Facebook e o Whatsapp, aplicativos comumente englobados por práticas de zero-rating serem os mais utilizados para consumir e compartilhar notícias. Segundo o Relatório Mídia Digital Reuters, os índices chegam a  47% e 43%, respectivamente.

A prática de zero-rating tem contribuído para efeitos danosos em larga escala no Brasil, potencializando campanhas de desinformação. Os usuários ficam sem a dimensão de contexto de conteúdos compartilhados, já que ficam impossibilitadas de clicar em links, verificar a origem da informação ou buscar informações adicionais para checar determinada notícia e/ou informação. Pelo perfil socioeconômico de grande parte da população brasileira, o zero-rating é, muitas vezes, a única possibilidade de acesso aos conteúdos que circulam na internet, o que causa uma assimetria no acesso à informação. 

Uma solução (ainda que paliativa) ́ proposta pelo DFRLab é a inclusão de sites de fact-checking em políticas de zero-rating. No Brasil, medida semelhante foi adotada nas eleições de 2020, quando o Tribunal Superior Eleitoral, como parte de sua campanha contra a desinformação, firmou um memorando de entendimento com a Conexis Brasil Digital, pelo qual as operadoras de telefonia assumiram o compromisso de não cobrar pelo acesso ao site do Tribunal. 

Contudo, uma resposta mais eficaz ao problema apresentado passa pela garantia do acesso a uma internet livre, segura e neutra como forma de enfrentamento à desinformação. A liberdade de expressão e o acesso à informação, apoiados pelo acesso universal à internet, são partes essenciais do arsenal contra a desinformação. 

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