Arte e Internet: vigilância, censura e liberdade de expressão

PEDRO PERES CAVALCANTE¹

Na semana passada, o Lapin recebeu os artistas Gu da Cei, Ju Borgê e Marcello D’Avilla para um bate-papo sobre como vigilância, censura e liberdade de expressão permeiam a relação entre o fazer artístico e a Internet. O diálogo foi mediado pelo nosso conselheiro presidente Thiago Moraes, que iniciou a conversa perguntando sobre as percepções pessoais de cada convidado sobre a arte.

Na visão de Gu da Cei, ao mesmo tempo em que é uma forma de expressão de sentimentos e opiniões pessoais, a arte só se completa a partir da recepção do Outro. Foi a partir dessa percepção do sentir-se observado pelo Outro que se originou um dos trabalhos mais relevantes do artista. Na intervenção artística Face Recognition, Gu projeta sobre o espaço público de uma rodoviária brasiliense imagens suas coletadas pelas câmeras de reconhecimento facial instaladas compulsoriamente desde 2018 nos ônibus do sistema de transporte público do Distrito Federal. Incomodado com a sensação de paranoia trazida pela vigilância nos meios de transporte, o artista decidiu solicitar suas imagens, com base na Lei de Acesso à Informação, relatando uma recorrente burocracia até poder finalmente vê-las. Instaladas sob o pretexto de combate a fraudes no uso de gratuidades no sistema de transporte público, as câmeras, na sua percepção, têm um proeminente caráter invasivo.

Face Recognition, intervenção artística de Gu Da Cei na rodoviária do Plano Piloto (DF). 2018.

“Essas imagens dos ônibus dizem muito […] [várias] coisas que eu nem me lembrava ou que eu não queria que as pessoas vissem no sentido de dizer o meu estado físico, psicológico…”, coloca Gu. Ele ainda relatou que sua produção artística influenciou outras pessoas a fazerem solicitações análogas, e que teve novos pedidos de acesso à imagem negados após realizar uma série de performances intencionais em frente às câmeras dos coletivos. Como destacado pelo mediador Thiago Moraes, essas negativas são legalmente insustentáveis, posto que imagens obtidas em transportes públicos não têm teor sigiloso, sendo infundadas as negativas do Estado em cumprir o direito de acesso aos dados, plasmado no art. 7º, II, da Lei de Acesso à Informação e no art. 18, II, da LGPD, ainda em vacatio legis. Percebendo a vigilância estatal como um impeditivo à realização de um direito ao livre trânsito no espaço urbano, Gu da Cei propõe, com sua produção artística, um movimento inverso de vigilância, para “vigiar quem nos vigia”.

É também sob este vigilante olhar público que a artista multidisciplinar Ju Borgê desenvolve seu trabalho no espaços urbanos. Embora a Lei 6094/18 do Distrito Federal preveja distinções entre o grafite e a pichação com base em critérios estéticos e paisagísticos, Borgê falou sobre como seus processos artísticos no meio urbano transitam com facilidade entre legalidade e ilegalidade. Pessoas que se propõem a alterar a paisagem urbana, da prática da pichação à feitura de painéis gigantes de grafites assinados por nomes conhecidos, convivem com a possibilidade de verem suas próprias intervenções passarem por novas modulações, dada a transitoriedade do espaço público.

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“[A Internet] às vezes pode ser uma armadilha, mas às vezes
também pode ser nossa armadilha.” – Ju Borgê.

Para Borgê, a Internet surge como uma aliada no registro dessas práticas, “eternizando-as” ao arquivá-las. Concebidas a fim de regular o espaço urbano-paisagístico, ao valorizar manifestações artísticas e condenar, pelo meio de multas, intervenções indesejadas como a pichação, leis como a anteriormente citada acabam incorrendo na perigosa questão de definir o que pode ou não ser arte, legitimando ou invalidando expressões no meio urbano.

É este um dos pontos latentes na produção de Marcelo D’Avilla, que trabalha, entre outros meios, com pornografia e reivindica a potencialidade artística desse tipo de expressão. Para ele, a capacidade catártica da arte se origina, entre outros elementos, do confronto. D’Avilla comenta que seja qual for o suporte artístico – de uma tela a um grafite a um corpo performático -, a experiência artística sempre parte da subjetividade do olhar do terceiro, que faz com que cada espectador interprete a obra a partir das referências que acumulou de suas próprias vivências. Em relação ao seu trabalho, o artista expõe que o olhar do terceiro que o interpreta é subjugado pelos preconceitos e tabus sociais em relação ao corpo. Para ele, se por um lado a Internet ajudou bastante os artistas a promoverem seus trabalhos e firmarem conexões relevantes, também permitiu a usuários que eventualmente não gostem do conteúdo de trabalhos artísticos expressar de uma maneira contundente sua desaprovação. D’Avilla entende que o fácil anonimato experienciado na Internet pode potencializar as pretensões censoras dos indivíduos, relatando que já teve sua conta paga na plataforma Vimeo removida em razão do grande número de denúncias feitas por pessoas que não apreciaram o conteúdo das performances lá registradas.

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“A minha arte é disruptiva. […] O papel fundamental da arte pra mim é
ser disruptivo ao seu tempo” – Marcelo D’Avilla.

Como se sabe, em várias plataformas digitais é fornecida a opção de denúncia do conteúdo compartilhado por usuários. Esta é uma ferramenta de controle e moderação do conteúdo em circulação, a fim de manutenção das diretrizes de conteúdo estabelecidas por cada plataforma. A nudez em trabalhos artísticos, especialmente em suportes fotográficos ou audiovisuais, segue sendo um dos mais controvertidos conteúdos a circularem em plataformas digitais. Em junho de 2019, a iniciativa We The Nipple – inspirada no movimento parônimo Free The Nipple – realizou protestos contra a censura a trabalhos artísticos envolvendo corpos femininos nas imediações da sede do Facebook na cidade de Nova Iorque. Noticiou-se que o Facebook decidiu atender às solicitações feitas a respeito da criação de um grupo de trabalho envolvendo artistas, educadores de arte, representantes de instituições do meio artístico e funcionários do próprio Facebook, a fim de conceber soluções ou alternativas que se mostrem sensíveis aos pleitos do meio artístico. Embora em outubro do ano passado tenha sido noticiada o que teria sido a primeira reunião deste grupo, mudanças efetivas ainda não foram implementadas nas interfaces de Facebook e Instagram. Como Marcelo D’Avilla expõe, a prática artística acaba vendo-se tolhida frente às decisões das plataformas digitais, as quais , em sua experiência, são bastante unilaterais, não oportunizando de maneira efetiva o direito à contestação.

O convite ao diálogo entre os artistas Gu da Cei, Ju Borgê e Marcelo D’Avilla serviu como uma curiosa exploração sobre como a Internet e suas aplicações e tecnologias têm influenciado o meio artístico. Se você se interessou pelos temas discutidos, assista à conversa na íntegra no canal do Lapin no Youtube:

https://youtu.be/HRIFlVWtH50

¹ – Pedro Peres é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Interessa-se em vários temas de Governança da Internet, preferindo um enfoque que analisa as relações sociais com as novas tecnologias em seu aspecto mais cotidiano.

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