No dia 01/07, o LAPIN promoveu o webinário “Territórios virtuais, identidades reais: vivências LGBTQI+ na Internet”, moderado por nosso conselheiro-presidente Thiago Moraes. A discussão foi formatada de modo a refletir sobre os impactos positivos e negativos que a Internet e as aplicações digitais podem ter na vida das pessoas LGBTQI+. Os convidados foram Julio Cardia, CEO/Voluntário do Centro LGBTS+ de Brasília; Miranda Almeida, coordenador de comunicação do Instituto LGBT+; Carolina Rezende, membro da Rexistir – Núcleo LGBT+e Mayara Santana, designer, videasta e autora da websérie documental Rebu – Egolombra de uma Sapatão Quase Arrependida. O presente relatório visa a sintetizar os principais pontos levantados durante o debate.
Após a apresentação dos convidados, Thiago Moraes lançou as perguntas norteadoras do debate.
Vocês acham que as interfaces digitais facilitam o processo de formação de uma comunidade que compartilha vivências e interesses?
Miranda Almeida acredita que a o acesso à Internet é um fator determinante para esta questão, pois no Brasil há uma lacuna relevante sobre quem possui acesso à Internet, o que se origina das desigualdades entre classes. Miranda ainda apontou que grupos privilegiados, como homens brancos, têm uma presença maior nos processos de desenvolvimento das tecnologias digitais no geral, o que pode contribuir para o afastamento de grupos de pessoas diferentes ao acesso à Internet e aos benefícios que ela poderia proporcionar a estas pessoas. Outro ponto levantado foi o distanciamento da comunidade LGBTQI+, ou seja, o apagamento de memórias de identidades mais marginalizadas que outras, como o caso de pessoas transgênero e pessoas mais velhas. Isso faz com que, mesmo na Internet – que possui um potencial grande de promover agregação – algumas pessoas continuem sendo excluídas.
Carolina Rezende começou sua fala abordando a existência do racismo algorítmico. Carolina mencionou um artigo escrito pelo pesquisador Tarcízio Silva sobre o assunto, que aponta de que maneiras algoritmos usados em redes sociais perpetuam o racismo. Thiago Moraes atribuiu o poder dos algoritmos de perpetuar preconceitos aos vieses subjetivos que seus desenvolvedores e usuários podem neles imprimir carregam valores subjetivos dos seus desenvolvedores e usuários. Para este processo, contribui diretamente a falta de diversidade nas equipes humanas que desenvolvem algoritmos e aplicações de Internet .
Como vocês avaliam o papel da Internet nas atividades em prol da causa LGBTQI+ das quais vocês fazem parte?
Mayara Santana explicou que, a princípio, o seu documentário Rebu não tinha sido feito na expectativa de que um número muito grande de pessoas o assistisse, tendo um público-alvo específico: pessoas LGBTQI+. Mayara também achou muito interessante difundir a sua história sem a intermediação de uma sala de cinema, ao divulgar a série no formato IGTV na plataforma Instagram.
Como você avaliaria a importância da Internet para a sua instituição nesse contexto durante o contexto atual? Ela permitiu que novas ações e iniciativas, antes impensadas, pudessem aparecer?
Júlio Cardia apontou o grande alcance permitido pelas redes sociais do Centro LGBTS de Brasília, do qual é CEO e voluntário. A presença virtual do Centro dá visibilidade aos variados projetos feitos pela organização e possibilita a documentação do trabalho feito durante os anos de funcionamento da ONG.
Elementos interseccionais nas vivências LGBTQI+
A interseccionalidade de diferentes recortes identitários é percebida como um aspecto de alta relevância na vida das pessoas LGBTQI+, que muitas vezes têm sua experiência nas áreas de sexualidade e identidade de gênero modulada por outros aspectos identitários. Mayara apontou os diferentes pesos que clivagens como raça, classe e identidade de gênero possuem na vida dela e de outras pessoas. A videasta explicou que sua cor é um aspecto que precede sua sexualidade em todas as suas vivências. A videasta atribui isso ao fato de o Brasil ser muito racista e ao fato de que, na comunidade LGBTQI+, ser uma mulher negra lhe causa maiores dificuldades do que ser uma mulher lésbica. Já Miranda, que já atuou como produtor de eventos na cena ballroom, observa que neste meio existe uma hierarquia em termos de recortes, na qual o elemento racial precede os aspectos de gênero e sexualidade. Isso porque o movimento ballroom procura reconhecer as vozes que mais precisam ser ouvidas, já que estes espaços foram criados por pessoas que mais tiveram os seus direitos negados, sendo uma forma de resgatar a memória do grupo e promover uma noção de pertencimento.
A partir do que foi exposto, Thiago e Júlio chamaram atenção para o fato de que a Internet e plataformas de redes sociais têm um papel de promover o resgate da memória da comunidade, o reconhecimento de identidades e a construção de narrativas. Júlio explicou que constantemente as narrativas de pessoas negras e LGBTQI+ são apagadas. A Internet contribui para dar visibilidade ao trabalho destas pessoas, além de servir como um espaço de afirmação de suas identidades e de luta pelo seu reconhecimento na sociedade.
A desinformação é um desafio nas suas vivências pessoais e profissionais?
A partir de experiências pessoais e de sua atuação na Rexistir, Carolina abordou a existência de riscos provenientes da exposição na Internet para pessoas LGBTQI+. Isso porque há uma certa imprevisibilidade sobre como essas informações serão vistas pela sociedade. Temendo a discriminação ainda latente em vários espaços, muitas vezes a população LGBTQI+ opta por omitir os aspectos da sexualidade e/ou identidade de gênero na sua vida online para que ela não influencie as suas oportunidades de trabalho e relações no convívio social.
Mayara apresentou que a exposição no mundo virtual pode gerar efeitos negativos na medida em que as narrativas saem de controle, podendo gerar ondas de ódio e linchamento virtual.
Visibilidade e privacidade são questões opostas ou complementares?
Júlio percebe a privacidade como um privilégio e coloca que a influência de algoritmos presentes nas plataformas de redes sociais tem o potencial de moldar os interesses dos usuários destas redes, ou ainda, de interpretá-los de maneira errônea. Para Miranda, a segurança digital desempenha um papel importante, pois, a partir da comercialização dos dados dos usuários da Internet, pessoas LGBTQI+ podem ser expostas em nome do lucro de grandes empresas de tecnologia, havendo risco à vida destas pessoas pela exposição das suas vidas privadas.
Diante deste quadro, devemos nos lembrar da importância desempenhada pelas regulações de proteção de dados pessoais. Normas como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) europeu visam à promoção do fluxo adequado dessas partículas informacionais, conciliando os potenciais econômicos destravados pelo seu uso com o exercício de direitos e o livre desenvolvimento da personalidade de seus titulares. Dados relativos à sexualidade, por exemplo, podem ser compreendidos como dados sensíveis, um tipo de dado pessoal que avoca maiores salvaguardas legais em razão do potencial de discriminação e interferência negativa na vida de seu titular se for utilizado para fins negativos.
Experiências negativas no mundo virtual
Carolina compartilhou um incômodo sobre a banalização do termo linchamento virtual. Segundo ela, há uma crescente cultura nas redes sociais em que grandes grupos de internautas proferem críticas exacerbadas sobre determinadas pessoas a partir de aspectos de suas vidas que vêm à tona ao debate público. Infelizmente, quem sofre maiores consequências a partir deste tipo de violência são aquelas pessoas mais vulneráveis socialmente e que não possuem recursos suficientes para lidar com essas situações. Para apontar o mau uso do termo “linchamento virtual”, Carolina lembrou o caso lamentável de Dandara dos Palmares em 2017, travesti que foi violentamente assassinada em Fortaleza. Para a convidada, o termo linchamento carrega um significado de violência física que não deveria ser esvaziado ao ser relacionado com a atual “cultura do cancelamento”. Miranda concordou com as colocações de Carolina e compartilhou sua reprovação à maneira como matérias jornalísticas de maneira geral costumam retratar pessoas transgênero. Nesses retratos, a identificação da pessoa pelo nome social que esta adota costuma vir acompanhada do nome registrado em cartório, o que Miranda percebe como uma provocação violenta à própria existência de pessoas trans. O convidado também relatou que percebe que os temores de sofrer discriminação e violência na Internet após ter assumido sua identidade transgênero o fizeram diminuir sua participação em redes sociais.
Caminhos para uma Internet livre e plural
Júlio acredita que a Internet não é um ambiente livre, colocando que tenta conviver com essa realidade digital que sabe ser extremamente controlada por poderes específicos. Para Miranda, possíveis caminhos para alcançar uma Internet nestes moldes envolvem a promoção da acessibilidade e da educação. Segundo Miranda, pessoas com deficiência não têm um espaço de projeção significativo na comunidade LGBTQI+ e é importante que a Internet seja um espaço de fácil acesso às pessoas que possuem dificuldades motoras e sensoriais. Mayara chamou atenção para as dificuldades de acesso à Internet em diferentes regiões do Brasil e como isso afeta a promoção de uma Internet plural. Carolina concorda que a educação seria um caminho e defende que a segurança digital tem um papel importante neste cenário, pois garantiria o acesso seguro à Internet.
Assista ao webinário na íntegra: