O relatório “Justiça em Números” de 20201, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), destaca que o Brasil tinha cerca de 77,1 milhões de processos em tramitação ao final de dezembro de 2019. Apesar de o relatório registrar, pela segunda vez consecutiva, uma redução no número de casos acumulados e destacar a diminuição de aproximadamente 1,5 milhão de processos em comparação com o ano anterior, o panorama geral da litigância no Brasil continua sendo surpreendente e insustentável. Nesse contexto, com o objetivo de proporcionar eficiência no julgamento e corroborar de diversas formas com a persecução do princípio constitucional da duração razoável do processo, muitos tribunais estão desenvolvendo, de forma esparsa e descentralizada, mecanismos de Inteligência Artificial (IA). Considerando a grande inovação e o potencial disruptivo das novas tecnologias, este artigo tem como objetivo analisar qual o panorama geral do uso de IA nos tribunais brasileiros e quais as perspectivas e desafios do desenvolvimento tecnológico das cortes.
O uso de IA no sistema judiciário: panorama geral
De acordo com o levantamento do CNJ intitulado “Projetos com Inteligência Artificial no Poder Judiciário”2, atualmente há 41 projetos em curso para utilização de IA em 32 tribunais diferentes. Ao se analisar os seguimentos de justiça que buscam empregar essa nova tecnologia, a Justiça Estadual se destaca ao representar quase a metade dos projetos em andamento (20 projetos), seguida pela justiça do Trabalho (8) e pela Justiça Federal (6). Como consequência dessa variedade de tribunais, os objetivos com o desenvolvimento de tais tecnologias também são diversos e podem abarcar, entre outros exemplos, (i) a classificação de peças processuais; (ii) predição de demandas repetitivas e agrupamento de processos similares; (iii) triagem de processos; (iv) cumprimento de mandados judiciais; e (v) análise de pressupostos extrínsecos de recursos.
À primeira vista, portanto, o volume de iniciativas voltadas para implementar IA em diversos procedimentos do sistema judiciário parece demonstrar uma certa aceitação dos tribunais em relação a tais inovações. Se o Direito, tradicionalmente, foi resistente à implementação de novas tecnologias em seu dia a dia, a revolução tecnológica das cortes parece que será uma realidade concreta antes do que muitos esperavam.
Desafios e perspectivas
Não obstante o avanço aparentemente rápido de novas tecnologias nos tribunais, é de se notar que o desenvolvimento descoordenado de projetos de IA acabou por gerar um “universo de algoritmos aparentemente descoordenados no Judiciário”, como observou estudo desenvolvido por um time de Capstone da Escola de Assuntos Internacionais e Públicos (SIPA) da Columbia University3. Essa falta de coordenação ou padronização das iniciativas trará desafios para a administração da justiça e para os jurisdicionados, alguns dos quais já podem ser evidenciados pelos dados levantados pelo CNJ.
Uma primeira consequência da forma descentralizada de desenvolvimento de IA é a ausência de padronização dos sistemas utilizados: apenas 16 das 41 iniciativas foram desenvolvidas para o Processo Judicial eletrônico (PJe), plataforma que o CNJ vem tentando universalizar há tanto tempo. Se os mecanismos de IA em desenvolvimento forem construídos para outro sistema, é bem possível que, a médio ou longo prazo, isso dificulte ainda mais a adoção de um sistema unificado nos tribunais.
Outro problema facilmente identificável diz respeito ao questionamento feito sobre a disponibilização pública do código da ferramenta para que ele possa ser revisado. A maioria das iniciativas em desenvolvimento (26 de 41) respondeu que o código não estaria disponível ao público e que não poderia ser revisado por terceiros, dado que traz grandes questionamentos sobre a conformidade de tais projetos com princípios básicos da IA, como a transparência e a explicabilidade dos algoritmos. Tal questão é especialmente preocupante em relação aos algoritmos que, de certa forma, possuem impactos no resultado de julgamentos, afinal, como garantir a imparcialidade, a idoneidade e a correição de uma IA se o código permanece restrito aos funcionários dos tribunais e não pode ser auditado pela sociedade quanto aos parâmetros de seleção do dataset ou do processo de machine learning, por exemplo?
Por fim, outra problemática que pode ser evidenciada nesse breve artigo diz respeito à propriedade da ferramenta e do código utilizado no desenvolvimento das IAs. Apesar de o art. 24 da Resolução nº 322/CNJ recomendar que “os modelos de Inteligência Artificial utilizarão preferencialmente software de código aberto”, para garantir a revisão pública do algoritmo e para facilitar a interoperabilidade entre sistemas de diversos tribunais, as respostas obtidas no levantamento do CNJ demonstra que apenas 4 das 41 iniciativas utilizam softwares de licença livre, em oposição a 27 projetos que declararam que o código pertence ao próprio tribunal e 10 que declararam que pertence a terceiros.
Tendo como base esse contexto, e olhando para o futuro do uso de IA nos tribunais brasileiros, o relatório “O Futuro da IA no Sistema Judiciário Brasileiro”4 destacou ao menos 5 recomendações essenciais de serem observadas para um avanço responsável da IA no sistema judiciário, sendo elas: (i) o estabelecimento de uma agenda unificada a respeito do uso de IA no Judiciário; (ii) a integração do Poder Judiciário, especialmente por meio da utilização de softwares de código aberto e do fomento a mecanismos de interoperabilidade entre os sistemas dos tribunais; (iii) o fortalecimento da estrutura do INOVA PJe; (iv) o desenvolvimento de mecanismos e bases legais que permitam uma participação segura do setor privado em iniciativas de IA; e (v) o desenvolvimento de ferramentas de monitoramento das IAs que estão sendo desenvolvidas nos tribunais, a fim de garantir que as tecnologias atendam parâmetros mínimos de acurácia, confiabilidade, segurança, robustez e equidade dos outputs da tecnologia.
Conclusão
Como se pode perceber, os projetos de IA parecem estar avançando a passos largos nos tribunais brasileiros. Contudo, paralelamente, surgem diferentes desafios relacionados a implementação responsável de tais tecnologias que deverão ser superados e endereçados com a maior brevidade possível.
Após entender como os tribunais estão desenvolvendo sistemas de IA, além de perceber os respectivos desafios inerentes a uma falta de harmonização e estratégia interoperável, nos resta acompanhar, nos próximos anos, como que tais sugestões serão tratadas e como que o CNJ atuará para garantir a transparência e adequação das dezenas de algoritmos que atualmente estão sendo desenvolvidos.
[1] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/
[2] Disponível em: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=29d710f7-8d8f-47be-8af8-a9152545b771&sheet=b8267e5a-1f1f-41a7-90ff-d7a2f4ed34ea&lang=pt-BR&opt=ctxmenu,currsel. Consulta em 16.3.2021.
[3] Estudo disponível em: https://itsrio.org/wp-content/uploads/2020/07/TRADUC%CC%A7A%CC%83O-The-Future-of-AI-in-the-Brazilian-Judicial-System.pdf
[4] Estudo disponível em: https://itsrio.org/wp-content/uploads/2020/07/TRADUC%CC%A7A%CC%83O-The-Future-of-AI-in-the-Brazilian-Judicial-System.pdf